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Histórico da confecção dos  Arranjos

 El Manicero

O mambo ou o son pregon “El Manicero” de Moisés Simmons foi a segunda composição escolhida para integrar a série de arranjos para fanfarra no site América Vizinha. A busca inicial por composições que trariam menos problemas de liberação de direitos, a importância histórica desta música, que tem uma quantidade significativa de versões em diversos idiomas e ritmos, são alguns dos motivos que levaram à sua escolha. Além disso, os elementos musicais presentes na sua estrutura me pareceram muito lúdicos, favorecendo os aspectos pedagógicos do projeto: o ostinato onipresente na música, sua harmonia simples e seus trechos melódicos também sem grande dificuldades,  também justificaram a decisão. Além destes motivos, uma lembrança de histórias de meu avô criaram laços afetivos com a obra. João Pamplona, nascido em 1910 foi, ainda garoto, vendedor das Casas Edison. Ele trabalhava na porta da loja colocando discos no gramophone, vendendo os sucessos dos artistas junto com as vitrolas. Foi através dele que ouvi pela primeira vez esta obra fundamental da música cubana, e que provavelmente plantou a semente do interesse em investigar a relação das platéias brasileiras com a música do resto do nosso continente. Ele me contava que “El Manicero” vendeu muitos discos no início do século passado.

Antes de começar a construir meu arranjo, aproveitei a diversidade de versões da canção, para observar o que me atraia ou me desagradava em cada arranjo desta música. Criei uma playlist só de versões da música (https://open.spotify.com/playlist/0fZuu2J3FPFRajAjwSLDSi?si=886a496227bb470e ) e ouvi incessantemente durante um período. A versão da fanfarra norte americana “ASU Sun Devil Marching Band” (Peanut Vendor) me serviu como exemplo do que não gostaria de fazer, que era ignorar as síncopes e as características rítmicas da música cubana para prevalecer uma estética de Banda Marcial dos modelos estadunidenses. Por outro lado, identifiquei em diversas versões que guardavam as características do mambo, uma linha de baixo  em comum, relativamente fácil para ser tocada na tuba. Fixando esta linha de grave, somando-se a ela a melodia e o tradicional contraponto da música, já se desenhava um ponto de partida bem razoável para inserir algumas ideias originais sem perder os elementos inerentes ao gênero. A versão de Cachao Lopes, ofereceu uma estrutura que também me agradou e pôde ser observada em outras versões, como a apresentação do tema seguida de um momento de “descarga”, de improvisação, guardando uma estrutura responsorial da tradição afro cubana, onde um refrão cantado ou tocado, intercala a participação dos improvisadores. O andamento moderado também foi característica “roubada” das versões de “El Manicero” que me agradavam. Quase um “mantra” com suingue, com síncope. Este andamento também favoreceu o caráter pedagógico do arranjo. 

Uma técnica (ou truque) que apliquei neste e em outros arranjos presentes no site América Vizinha foi a de reproduzir células dos instrumentos de percussão no naipe de sopros, e encontrei referência a esta maneira de proceder no texto de Dario Sotelo no Pequeno Guia Prático para o Regente de Banda da FUNARTE. Entendo que esta prática ajuda a “amarrar” as polirritmias dentro do conjunto.

Os primeiros rascunhos de “El Manicero” foram testados nas aulas de Saxofone B, onde uma ideia para o arranjo surgiu quando um aluno identificou semelhanças entre o maxixe e o mambo. Sem me ater ao mérito desta comparação, tive a ideia de citar o maxixe “Brejeiro” sobre o ostinato de “El Manicero”.  Algum tempo depois encontrei a versão do conjunto Aquarela Carioca com Ney Matogrosso, onde o grupo faz algo similar mas citando outra música brasileira (“Baby" de Caetano Veloso). 

No intuito de amenizar os desafios técnicos para os instrumentistas, observei tonalidade e tessitura e divisão dos trechos melódicos entre os naipes e famílias. Vale lembrar que a introdução em forma de canone, foi inspirada na versão do grupo “Los Cuatro de Belén” mas presente também em outras versões.

 

 Son de Los Diablos

O festejo peruano “Son de Los Diablos” de Filomeno Ormeño foi um desafio conceitual para o projeto, muitas questões foram levantadas no processo de escrita do arranjo que fundamentaram algumas escolhas. O gênero afro peruano colocou questões quanto à escrita das fórmulas de compasso que cruzaram abordagens pedagógicas interessantes para minha pesquisa. Uma das dificuldades iniciais foi entender o pulso desdobrado e colocar a quadratura escrita em compasso binário composto (6/8). Na minha percepção inicial, para a clave rítmica figurar em um compasso, muitas semicolcheias apareceriam representadas na partitura. Algo me dizia que não seria a melhor forma. No encontro que tive com o músico peruano Sergio Valdeos, ao indagar sobre o assunto, ele me pediu pra demonstrar na regência, como entendia o pulso em relação a melodia. Neste momento o músico peruano apontou meu equívoco: o pulso era o dobro do que eu percebia e para a clave rítmica ficar delimitada em um compasso, este teria que ser escrito em quaternário composto (12/8). O parentesco percebido por mim entre elementos do festejo peruano e o ritmo do jongo fluminense me fez pulsar de maneira equivocada. Ao estabelecer o compasso 12/8, as melodias se adequaram a uma escrita sem a presença de semicolcheias. Sergio Valdeos disse que podemos encontrar festejos escritos em 6/8, assim como o samba é escrito em 2/4, apesar da polirritmia do samba precisar de dois compassos para fechar o ciclo. Porém foi categórico quanto a ausência de semicolcheias. Nesta escrita equivocada, um músico peruano teria dificuldades na leitura. Esse desafio de escrita me levou a pensar em uma atividade que envolvesse a dança, para introduzir meus alunos do grupo de saxofones no arranjo de “Son de Los Diablos”.  O arranjo propriamente dito buscou a simplicidade e a transcrição de contrapontos presentes nas diversas versões da música, a harmonia também seguiu a linha minimalista, sem surpresas: tônica, dominante e uma aparição da subdominante no meio do arranjo, assim como na obra original. Os acordes simples amenizam a dificuldade do tempo harmônico, que por vezes causam uma certa inversão da cadência. O grande desafio do arranjo é a sincronia das polirritmias e contrapontos, mantendo o sabor sincopado e buscando se aproximar das características do gênero. Repetir a figura rítmica da “cajita” peruana no flautín, “roubar” a linha de baixo do landó (gênero parente do festejo, só que de andamento mais lento) para a Tuba e no Sax Barítono foram escolhas que se mostraram importantes no arranjo.

 

Tonos Negros

Este arranjo, de certa forma, foi o primeiro a ser feito, antes mesmo do início do mestrado. No ano de 2010 o grupo Songoro Cosongo (do qual faço parte) realizou quatro apresentações com Hugo Fattoruso na temporada “Afrolatinidades” que ocorreu nos CCBBs de Brasília e Rio de Janeiro. Nesta oportunidade tocamos a bela composição do mestre, intitulada “Tonos Negros”. A impressão que a música causava na banda e no público era forte. E a execução do mestre nas harmonias, comentários e contrapontos ficou gravada na mente e no gravador. O meu arranjo para esta música é uma adaptação da concepção do compositor deste candombe instrumental para a formação de percussão e sopro. A linha dos graves (tuba e sax barítono) segue um ostinato em arpejos, misturando um pouco da rítmica do tambor piano do Barrio Sur com o estilo de candombe pop. A terceira parte por sua vez replica na própria melodia, o tambor repique do candombe sobre acordes diminutos, dando um caráter figurativo para a seção, abrindo para alguma ideia mais livre. Perguntas e respostas, comentários intercalando timbres são presença constante no arranjo. Na repetição da música, as cifras sobre a partitura do sax tenor (tema A) e do clarinete 1 (tema C) sugerem liberdade ao intérprete para acrescentar improvisos, ou mesmo acrescentar variações sobre os temas tocados. No ano de 2012, a FANFARRADA, projeto que tenho com outros músicos residentes no Rio de Janeiro, foi selecionado no Edital Circuito das Artes, da Sec. Estadual de Cultura. Ainda encantado com música que tinha conhecido em 2010 e contando no grupo com os percussionistas Fabricio Reis (Uruguai), Victor Giraldo (Colômbia) e Tiago Almeida (Brasil) montamos um repertório de músicas “esquisitas” e o candombe milongon de Hugo Fattoruso fez parte do show. Obviamente, como todo candombe, foi uma boa música para se tocar andando. O arranjo que escrevi para essa temporada  é a base do arranjo atualizado para o site América Vizinha, onde a seção rítmica é nitidamente inspirada no que esses três percussionistas montaram para a temporada. Com a introdução em uma cadência, seguida da  clave (palo na madeira do tambor) imitada pelo naipe das palhetas, com a “cuerda” de candombe iniciando com o tema A, saindo na parte B e retornando na terceira seção. Repetindo o formato presente na maioria das versões da música. A obra apresenta algumas situações propícias ao aprimoramento de técnica e de expressividade, com dinâmicas marcadas e climas simples para improvisação. Neste item, inserí as cifras dos acordes de determinados trechos, sugerindo um improviso sobreposto a melodia, no sax tenor e no clarinete 1. Aludindo um pouco à sonoridade das fanfarras de New Orleans e do Mardi Grass.

 

El Brujo de Arjona

Na busca por uma cúmbia colombiana que tivesse direitos de execução liberados (essa foi uma preocupação que depois abandonei) cheguei ao compositor Guillermo Buitrago (1920 -1949). A composição “El Brujo de Arjona” deste artista, de 3 partes, em tom menor  e harmonia muito simples (tônica - dominante) me pareceu muito propícia para integrar o projeto. Mas o gênero original não pode ser definido como cúmbia, pela instrumentação de algumas regravações se aproxima do “Vallenato”, gênero da costa do pacífico onde o acordeon é o protagonista. O músico colombiano Victor Giraldo que me acompanha em várias atividades sugeriu que organizasse o arranjo no gênero do “merecumbê”, um dos muitos parentes da cúmbia. Mas acabei formatando o arranjo em cúmbia por achar de mais fácil compreensão dos iniciantes e por dominar mais o ritmo. Desde o início tive como objetivo trazer as características orquestrais do grande maestro colombiano  Lucho Bermudez, referência nas cumbias orquestrais e na música colombiana, para o arranjo. Duas características do estilo do maestro que selecionei foram: 

  • Diálogo entre naipes, com frases melódicas divididas entre madeiras e metais, nas partes ou no esquema pergunta/resposta

  • Presença de ostinato melódico/harmônico nas palhetas como um “tumbao” para cúmbia. Característica que imagino Lucho Bermudez ter sido influenciado por Perez Prado, transportando a mão direita do piano para os saxofones.

Na segunda parte da composição alterei a harmonia que se mantinha originalmente no acorde da tônica menor e na dominante, para inclinar rapidamente para o relativo maior e retornar em seguida para cadência inicial (Im - V). Após uma seção para improviso com trecho da terceira parte servindo de referência, introduzi uma variação temática, inspirado em  citações de músicas do maestro, como “Fiesta de Negritos” e “Colombia, tierra querida”.

Apesar de complexificar o tema original, acredito que os leitores do arranjo podem editar (utilizando os arquivos musescore) algumas partes para que atendam às capacidades dos mais iniciantes. Melodia e contraponto simples dão conta da música tranquilamente.

Escrevi a música em 2/2 por observar que a maioria das partituras de cumbias, porros e merecumbés são representadas nesta fórmula de compasso.

 

La Telesita

No arranjo da chacarera “La Telesita” dois conceitos motivaram minha escrita, possibilitar que músicos iniciantes tocassem ao lado de músicos mais experientes e reforçar o clima melancólico que identificava na letra da canção. A música original homenageia um mito popular  argentino, narrando a história de uma camponesa que arde em chamas ao bailar chacareras perto de uma fogueira. A introdução do arranjo valoriza o ostinato mais simples do bombo leguero ao transportá-lo para a tuba. Os clarinetes iniciam citando o tema (A) de forma mais simplificada em entradas alternadas, como uma pirâmide e sem percussão. Na primeira repetição (B), a banda toda executa o tema completo, com metais e madeiras se alternando entre melodia em um acompanhamento, que procurou imitar o “rasqueado” tradicional do violão no ritmo da chacarera. Na terceira exposição do tema (C) é a vez da desconstrução melódica executada somente pelos metais, com notas longas e de fácil execução. Este trecho reforçou o caráter solene  da obra e diversificou o colorido dos timbres no arranjo. Na quarta exposição do tema (D), a banda toda retorna em um crescente de intensidade que sinaliza para o final, com o flautim se responsabilizando pelo “rasqueado” tradicional do violão durante toda a parte. Importante frisar que na quarta seção (D), escrevi uma segunda menor entre os clarinetes, que trazem uma certa estranheza, mas foi um recurso que importei de algumas versões tradicionais da música e está presente em outras chacareras tradicionais. Um intervalo sonoro que cria um efeito timbrístico que lembra o clima ébrio das festas regadas a vinho em torno da fogueira. Nas cuecas chilenas também observei este recurso. No Coda, que nada mais é do que uma repetição do trecho final da melodia (formato característico tradicional de diversas chacareras), coloquei o flautim tocando a melodia no tom de Ré menor sobre o resto dos sopros que por sua vez tocavam em Sol menor. Este recurso surgiu a partir de uma lembrança dos meus tempos de aluno na Escola Nacional de Música, quando toquei sax tenor no “Bolero” de Ravel com a orquestra (ORSEM) e percebi de dentro, que o flautim tocava em uma tonalidade diferente a parte final, de forma quase imperceptível na textura densa da orquestração mas acrescentando um sabor único. Guardadas as devidas proporções, do gênio para a minha humilde e simples escrita, considero que pelo  tema também ter se  repetido diversas vezes, esta sobreposição de tonalidades não sou gritante e acrescentou interesse ao simples arranjo.

 

 

Bailecito

O arranjo da música chamada “Bailecito” foi uma transcrição do original para a formação de fanfarra definida por mim como: 1 flautim, 2 clarinetes, 1 sax alto, 1 sax tenor, 1 sax barítono, 2 trompetes, 2 trombones, uma tuba e uma  bateria (ou um set de percussão que inclui prato, surdo ou bumbo e caixa ou tarol). A transcrição desta música de compositor desconhecido teve como referência a gravação original realizada   por Víctor Jara e o grupo Quilapayún, ambos de origem chilena. O gênero rítmico desta música  é descrita nesta gravação como sendo uma cueca (gênero típico do Chile), porém investigando um pouco com músicos conhecedores da música desta parte do continente, fui levado a entender as claves rítmicas  presentes na gravação como sendo de outro gênero musical, a “zamacueca”. Porém ao ler o livro de Atahualpa Yupanqui (O Canto do Vento) encontrei diversas referências ao “Bailecito” enquanto gênero musical presente nos pampas argentinos e na região andina. O que me leva a crer que esta música de compositor desconhecido se encontra em uma área de interseção estilística, entre gêneros aparentados ritmicamente e que apresentam denominações próprias a cada região. Dito isso, o arranjo propriamente dito procurou guardar as características harmônicas, melódicas e rítmicas presentes na gravação de referência, transportando estes elementos para instrumentos de sopro e percussão. O cânone inicial foi mantido nas madeiras e a estrutura das cadências, onde o terceiro tempo do compasso ternário é pontuado por um acorde que resolve no compasso seguinte durante toda a primeira parte. Ambas as partes começam na tonalidade maior mas terminam no relativo menor, reforçando certo clima modal da música. Fora isso, os recursos de arranjo se repetiram: contraste de timbres intercalando os naipes entre melodia e acompanhamento e a imitação dos ritmos percussivos nos sopros abaixo dos temas. Tanto este arranjo quanto o da chacarera “La Telesita” confirmaram a intenção inicial de manter o nível de dificuldades técnicas baixo, propício para os estudantes mais iniciantes.

 

El Diablo Suelto

Esta composição de 3 partes, onde a primeira e a segunda partes permanecem na tonalidade de Dó maior e a terceira é tocada na tonalidade de Fá maior. Apesar de algum parentesco com as valsas-choros brasileiras, na maioria das versões pesquisadas ela não se apresenta na forma rondó (com retorno à parte A entre as partes B e C). A forma mais comum encontrada foi a estrutura A - B - C, por vezes apresentando um retorno total da estrutura (da capo tutti) e finalizando na terceira parte.

Considero o arranjo do joropo “El Diablo Suelto” na escala de dificuldades como adequado para músicos de nível técnico mais avançado (entre os 7 arranjos produzidos). A melodia muito movida, o andamento mais puxado e em particular nas variações da parte B e C, contendo momentos que exigem maior domínio técnico dos instrumentistas. 

Esta composição também permitiu uma extensa pesquisa na internet de partituras e versões instrumentais. Desde a explosiva  fanfarra mexicana “Monarca”, a grupos de joropo venezuelano com flauta, maracas e cuatro (instrumento típico da Venezuela), interpretação virtuosistica ao violão de John Williams, o piano solo de Ruben Gonzalez no disco Buena Vista Social Club, ou a performance de Paquito Rivera com a Gregório Uribe Big Band, apresentam rico cardápio de escolhas orquestrais para referência na confecção da minha versão. Busquei oferecer momentos de desafios técnicos, mas sem exageros. A partitura de “El Diablo Suelto” se mantém dentro dos limites técnicos de um músico médio de choro carioca. Com exceção da seção rítmica, nada do que aparece no pentagrama difere muito de uma valsa choro. Mas uma característica muito comum ao joropo, é a ambiguidade entre o compasso ¾ e o 6/8, também por vezes encontrada na música brasileira. Mas no joropo percebo por vezes, uma sugestão fraseológica que traz sensação de compasso ⅝, com as melodias resolvendo na última colcheia do compasso. Trouxe para meu arranjo algo que ouvi em mais de uma versão, a reapresentação do tema B simulando um desdobramento da melodia com colcheias. Mas diferente das outras versões, sobrepus a melodia acelerada (clarinetes e sax alto) junto da melodia original (metais) chegando a resultado textural interessante. Na parte C, criei uma variação na reapresentação. Na parte rítmica busquei a referência da versão mexicana da fanfarra “Monarca” pois resolvia muito bem a transposição de uma música originalmente tocada só com maracas para uma formação próxima da que a escolhi como “fanfarra”.

Fanfarrada tocando o arranjo de ¨Tonos Negros¨em Miguel Pereira no ano de 2012.

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